D.E.

Publicado em 08/09/2009
AÇÃO ORDINÁRIA (PROCEDIMENTO COMUM ORDINÁRIO) Nº 2008.71.00.006546-0/RS
AUTOR
:
CLAYTON GONÇALVES DE GONÇALVES
ADVOGADO
:
VILMAR QUIZZEPPI DA SILVA
RÉU
:
UNIÃO - ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO












SENTENÇA












CLAYTON GONÇALVES DE GONÇALVES ajuizou a presente ação ordinária, com pedido de antecipação de tutela, em que postula a declaração de inconstitucionalidade do art. 47 da Lei nº 6.880/80 (e invalidade do art. 24, II, IV e V, do Dec. 4.346/02, que o regulamenta), anulando-se os processos administrativos disciplinares contra ele instaurados pelo Exército, nos quais não lhe foram assegurados o direito ao contraditório e ampla defesa, impedindo-se, por conseguinte, a sua exclusão do Exército, a bem da disciplina.

Informa o autor que incorporou ao Exército em 03 de fevereiro de 1988, sendo já estável, sendo injustamente punido diversas vezes durante esse período, punições essas que se baseiam no Dec. 4.346/02, que aprovou o Regulamento Disciplinar do Exército (RDE), cujas disposições são reconhecidas pela jurisprudência como arbitrárias, impondo-se a anulação das punições a ele impostas. Diz que as freqüentes punições levaram-no ao comportamento 'MAU', requisito para a instauração de processo administrativo visando à exclusão do militar, a bem da disciplina do Exército. Afirma que uma vez reconhecida a ilegalidade das punições não se configurará o comportamento 'MAU' e, portanto, não haverá razão para ser excluído do Exército. Sustenta que o art. 47 da Lei nº 6.880/80 não foi recebimento pela nova ordem constitucional, razão pela qual o RDE não pode ser considerado válido e, por conseqüência, as punições que lhe foram impostas, pois nele se fundamentam. Aduz também que não lhe foi assegurado o direito à ampla defesa durante a tramitação dos processos administrativos de que resultaram as punições. Requereu a antecipação dos efeitos da tutela, para impedir a sua eminente exclusão das fileiras do Exército, programada para janeiro de 2008. Requereu a concessão dos benefícios da Assistência Judiciária Gratuita.

Com a inicial vieram documentos, fls. 20/262.

Declinou-se da competência para processar e julgar a demanda, determinando-se a remessa dos autos a uma das varas criminais, eis a demanda fora proposta como ação cautelar preparatória de habeas corpus, fl. 263.

O juízo para o qual foram redistribuídos os autos recusou a competência que lhe fora atribuída e suscitou conflito negativo, fl. 264, tendo o TRF da 4ª Região declarado como competente o juízo suscitado - este Juízo, portanto, fls. 268/290.


Foi indeferido o pedido de antecipação dos efeitos da tutela, fls. 292/293.

Contestação às fls. 300/315, em que a União afirma que o autor não nega a ocorrência dos fatos que ensejaram as punições, limitando-se a apontar a existência de defeitos formais na sua apuração, o que não se verifica. Afirma que a rigidez das penalidades aplicadas aos militares fundamenta-se na necessidade de preservação da disciplina interna, pois se espera que os militares cumpram as regras com rigor maior do que aquele esperado dos demais servidores públicos; no caso do autor tal exigência se aquilata, eis que se trata de cabo com mais de 28 anos de serviço militar, incumbido de instruir outros militares, devendo, portanto, ter comportamento exemplar. Defende que todas as punições foram apuradas mediante processos em que foi assegurada a ampla defesa ao processado. Defende também que o Dec. nº 4.346/02 prevê outras formas de punição que não apenas a prisão, tais como advertência, impedimentos disciplinares, razão pela qual não se pode afirmar que tal regulamento seja integralmente inconstitucional e o entendimento de maneira contrária redundaria no reconhecimento de que as punições de advertência, impedimento disciplinar, repreensão e licenciamento e exclusão a bem da disciplina não podem ser aplicadas, pois reservadas à edição de lei em sentido formal. Sustenta que as penas previstas no Dec. nº 4.346/02 não dependem de lei para serem instituídas, não podendo ser declaradas inconstitucionais, assim como não há a alegada inconstitucionalidade do art. 47 da Lei nº 6.880/80. Diz também que a exclusão a bem da disciplina não obsta a percepção de valores destinados à mantença do autor e seus dependentes, apenas opera uma mudança na titularidade do valor pago, que passa a ser repassado diretamente aos dependentes. Informa também que o autor é réu em um processo criminal que tramita em Itaqui/RS, do qual poderá resultar a sua exclusão do Exército a bem da disciplina. Requer que caso se determine a reintegração do autor, seja determinada a suspensão dos pagamentos feitos aos seus dependentes, evitando-se assim o pagamento em duplicidade.

Juntou documentos, fls. 316/321.

Réplica às fls. 324/335, com documentos, fls. 336/367.


É O RELATÓRIO. DECIDO.

Defiro os benefícios da Assistência Judiciária Gratuita.

O autor sustenta que a sua exclusão do Exército é ilegal, eis que as punições que levaram-no a ingressar no comportamento 'MAU', requisito para a exclusão, fundamentam-se no Dec. nº 4.346/02, que regulamenta o art. 47 da Lei nº 6.880/80, que não teria sido recepcionado pela CRFB/1988, pois afronta o disposto no seu art. 5º, LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.

Destarte, para o correto deslinde da questão incumbe analisar a alegada inconstitucionalidade do art. 47 da Lei nº 6.880/80 e, caso constatada, os reflexos sobre o Dec. nº 4.346/02, que o regulamenta.

Da (in)constitucionalidade do art. 47 da Lei nº 6.880/80 frente ao art. 5º, LXI, da Constituição da República

O art. 47 da Lei nº 6.880/80, que trata das contravenções ou transgressões militares, prevê, in verbis:

Art. 47 Os regulamentos disciplinares das Forças Armadas especificarão e classificarão as contravenções ou transgressões disciplinares e estabelecerão as normas relativas à amplitude e aplicação das penas disciplinares, à classificação do comportamento militar e à interposição de recursos contra as penas disciplinares.

§ 1º As penas disciplinares de impedimento, detenção ou prisão não podem ultrapassar 30 (trinta) dias.

§ 2º À praça especial aplicam-se, também, as disposições disciplinares previstas no regulamento do estabelecimento de ensino onde estiver matriculada.
Por seu turno, o art. 5º, LXI, da Constituição da República estabelece que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.

O referido inciso do art. 5º da Constituição estabelece como regra que a prisão somente se dará nos casos de flagrante delito ou mediante ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, sendo que o próprio dispositivo excepciona a regra no que se refere aos militares, dispensando a ordem judicial quando aqueles transgridem as regras disciplinares que lhe são peculiares ou quando cometem crimes propriamente militares, sendo que tanto as hipóteses de transgressão quanto os crimes propriamente militares devem estar definidos em lei. Veja-se que na dicção do citado inciso, definidos em lei refere-se a casos, que engloba transgressões e crimes propriamente militares.

Tem-se assim que a definição do que sejam transgressões militares está reservada à lei em sentido formal, especialmente para os efeitos de cominação da pena prisão, pois a exceção inserta no art. 5º, LXI, como visto, refere-se apenas a prescindibilidade de ordem judicial escrita e fundamentada que determine a prisão daquele que venha a transgredir a disciplina militar ou cometer crime propriamente militar, não afastando, entrementes, a necessidade de que as transgressões disciplinares estejam previstas em lei em sentido formal.

Os crimes militares estão previstos no Código Penal Militar (Dec.-lei nº 1.001/69). Já as transgressões, como prevê o rt. 47 da Lei nº 6.880/80, serão especificadas e classificadas pelos regulamentos disciplinares das Forças Armadas, os quais deverão também estabelecer as normas relativas à amplitude e aplicação das penas disciplinares, à classificação do comportamento militar e à interposição de recursos contra as penas disciplinares, sendo que a as penas disciplinares de impedimento, detenção ou prisão não podem ultrapassar 30 (trinta) dias (§ 1º do art. 47 da Lei nº 6.880/80).

Como não há inconstitucionalidade formal superveniente, isso significa a recepção e vigência do regulamento anterior a 05/10/1988 como lei sem sentido formal, razão pela qual não se pode sustentar um vazio legislativo que implique comprometimento do princípio da hierarquia, estrutural para as Forças Armadas. O regulamento anterior a 05/10/1988 continua válido, recepcionado como lei ordinária, somente podendo ser alterado por meio de outra lei ordinária, a partir de 05/10/1988.

Todavia, a partir de 05/10/1988, as transgressões militares devem estar previstas em lei em sentido formal, por força do artigo 5º, inciso LXI, da Constituição da República. Isso não significa que o artigo 47 da Lei nº 6.880/80 foi revogado, senão que se tornou incompatível com a norma constitucional razão pela qual, a partir de 05/10/1988, não pode ser editado Decreto que, com fundamento no artigo 47 da Lei nº 6.880/80, se proponha a regulamentar transgressões disciplinares. Portanto, sanções a transgressões disciplinares aplicadas com fundamento no Decreto nº 4.346/02 são nulas.
Anote-se que o inciso X do art. 142 da CRFB/1988 estabelece que a lei disporá sobre questões relativas aos militares, como os direitos, os deveres, os limites de idade para ingresso nas Forças Armadas, autorizando que se leve em consideração as peculiaridades de suas atividades, o que não afasta a necessidade de se ter as transgressões militares definidas em lei, em respeito à unidade da Constituição, em especial ao inciso LXI, artigo 5º, da CRFB/1988.

O autor foi punido disciplinarmente com penas privativas de liberdade que o fizeram ingressar no comportamento mau, conforme consta da petição inicial (fl. 6), no período de 21/10/2003 a 08/12/2006. Portanto, essas punições disciplinares foram aplicadas com fundamento no Decreto nº 4. 346/2002, razão pela qual essas não podem subsistir, devendo ser anulados os processos administrativos dos quais decorreram tais imputações, reintegrando-se o autor às funções que outrora ocupava.

Saliento que embora não haja pedido expresso no sentido de que seja determinada a sua reintegração tal decisão não pode ser considerada extra petita, eis que é mister atentar para o fato de que a inicial destes autos referia-se a uma ação cautelar, cuja finalidade era tão-só assegurar a utilidade de provimento a ser postulado em ação ordinária a ser proposta posteriormente; a ação cautelar foi convertida na própria ação ordinária por decisão deste Juízo, fl. 293, in fine, razão pela qual deve-se entender que o pedido inicialmente formulado, que era o de obstar a exclusão do autor das fileiras do Exército, e que não foi provido inicialmente, dando azo à exclusão, converteu-se no de reintegração, caso procedente a demanda.

A procedência da demanda, por conseguinte, leva à obrigação de pagar os valores devidos desde a data da exclusão, compensados os valores eventualmente já pagos a título de pensão a seus beneficiários, conforme requerido pela União à fl. 314.

Dispositivo

Ante o exposto, julgo procedente o pedido para:

a) determinar a anulação e a exclusão das anotações constantes dos assentamentos do autor, referentes às transgressões disciplinares indicadas às fls. 06/07 da inicial;

b) determinar a reintegração do autor às fileiras do Exército, com efeitos retroativos à data em que fora excluído;

c) condenar a União ao pagamento dos valores devidos a título de remuneração desde a data da exclusão do autor, corrigidas monetariamente pelo IPCA-E, desde a data em que deveriam ter sido pagas, acrescidas de juros de mora de acordo com o art. 1º-F da Lei nº 9.494/97, com a redação dada pela Lei nº 11.960/2009, compensando-se os valores já eventualmente pagos a título de pensão aos beneficiários do autor.

Condeno a ré ao pagamento de honorários advocatícios, os quais fixo em 10% do valor atribuído à causa, corrigido monetariamente pelo IPCA-E, desde a data da propositura da presente demanda.

Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

Sentença sujeita a reexame necessário, a teor do disposto no art. 475, I, do CPC.
Porto Alegre, 20 de agosto de 2009.




































FRANCISCO DONIZETE GOMES
Juiz Federal