Vilmar
Quizzeppi
Possui graduação em
Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Pós-Graduação
em Direito Internacional pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul - UFRGS, Mestre em Direito
Ambiental e Desenvolvimento - A responsabilidade do
Poder Público no cometimento do crime ambiental.
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A ilegalidade da
aplicação das punições disciplinares de impedimento
disciplinar, detenção e prisão previstas no art. 24, incisos
II, IV e V, do
Decreto n° 4.346/02, diante da não recepção do art.
47 da Lei n° 6.880/80 pela CF/88.
A CF/88 em seu art. 5°, inc.
LXVIII prevê que “conceder-se-á 'habeas corpus'
sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de
sofrer violência ou coação em sua liberdade de
locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”.
No que tange a previsão do
art. 142, § 2°, da CF/88, o qual prevê “Não
caberá habeas corpus em relação a punições
disciplinares militares” é pacífica a
jurisprudência pátria quanto à possibilidade de
impetração do writ em relação a punições
disciplinares, mormente quando a prisão for
decretada em flagrante ilegalidade ou abuso de
poder, vedado, tão-somente, o exame de mérito.
Veja-se excerto da jurisprudência do STF, verbis:
"não há que se falar em violação ao art. 142, § 2º,
da CF, se a concessão de 'habeas corpus', impetrado
contra punição disciplinar militar, volta-se
tão-somente para os pressupostos de sua
legalidade, excluindo a apreciação de
questões referentes ao mérito"
(STF, 2ª Turma, RE nº 338840/RS, Rel.ª Min.ª Ellen
Gracie, DJ 12/09/2003) (g.n)
O ordenamento jurídico pátrio,
nos fundamentos da CF/88, art. 5°, inc. LXI, prevê,
verbis:
“LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito
ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade
judiciária competente, salvo nos casos de
transgressão militar ou crime propriamente militar,
definidos em lei;” (g.n)
Vê-se, claramente, que o
legislador constitucional teve o intuito de
estabelecer a necessidade de lei delimitadora das
hipóteses não apenas para os crimes, mas também para
as transgressões disciplinares.
O que se vê nas punições
disciplinares (prisão, detenção e impedimento
disciplinar), é que a
sanção aplicada ao paciente, na maior das vezes, está a restringir a
locomoção do militar e, dessa forma, só poderiam
ser validamente aplicadas caso houvessem sido definida
em lei stricto sensu, o que invariavelmente,
tem a reserva legal como forma de se coibir o
arbítrio e o abuso da Administração Pública,
mormente na caserna, quando da aplicação da
sanção disciplinar.
Destarte, com a entrada em
vigor da CF/88, houve a revogação do art. 47, da Lei
n° 6.880/80, mormente com relação às transgressões
militares que restringem a liberdade de locomoção,
como a detenção disciplinar, o impedimento
disciplinar e a prisão disciplinar
previstas no Decreto regulamentar, como ocorre hoje
no Exército Brasileiro, com a edição do Decreto n°
4.346, de 26 de agosto de 2002, que aprovou o
Regulamento Disciplinar do Exército (R-4).
Dessa forma, não restou o
Decreto supramencionado recepcionado pelo novo
ordenamento constitucional, pois incompatível com o
disposto em seu art. 5°, inc. XLI.
Conseqüentemente, viciada está
a edição do decreto n° 4.346, pois fulcrada em norma
legal não recepcionada pela Constituição Federal
vigente, o que, invariavelmente, viciou o plano de
validade de toda disposição regulamentar contida no
referido decreto, referente à aplicação das
penalidades de impedimento disciplinar, detenção e prisão disciplinares, ou
seja, inc. II, IV e V do art. 24.
Não se trata aqui da
inconstitucionalidade do Decreto que aprovou o
Regulamento Disciplinar do Exército, até porque a
jurisprudência do STF já se firmou no sentido de que
não cabe Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN)
com relação a dispositivos de Decreto que
regulamenta Lei, pois a questão nesse caso se coloca
no plano da legalidade e não da constitucionalidade.
(MEDIDA
CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA nº 763/SP, Relator Min.
Moreira Alves, publicada no DJU em 26/02/93, p.
02355).
Em verdade a
inconstitucionalidade do Regulamento Disciplinar do
Exército (RDE) já foi submetida à apreciação do
Supremo Tribunal Federal, nos autos da ADI n° 3.340,
a qual foi ajuizada pelo Procurador-Geral da
República, sendo que o Plenário, por maioria de
votos, não conheceu da ação. O julgamento foi em 03
de novembro de 2005.
Portanto, como bem asseverou
o Desembargador Federal do TRF da 4ª Região, ÉLCIO
PINHEIRO DE CASTRO, verbis:
“... a matéria a ser examinada resume-se à
incompatibilidade material do artigo 47 da Lei
6.880/80 com a
Magna Carta, especialmente em relação ao art. 5º,
inciso LXI,
verbis:
"Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por
ordem expressa e fundamentada de autoridade
judiciária competente, salvo nos casos de
transgressão militar ou crime propriamente militar,
definidos em lei."
Efetivamente, em atenção ao secular princípio de que
inexiste pena "sem prévia cominação legal" (nulla
poena sine praevia lege)
também expresso na Constituição de 1988,
não se há de admitir em um regime democrático o
estabelecimento de penas restritivas de liberdade (prisão
ou detenção) sem que tais sanções tenham sido
fixadas por lei, aprovada pelo Congresso
Nacional.
Desse modo,
não se pode afirmar que o artigo 47 da Lei
6.880/80 foi recepcionado pela Constituição,
eis que com ela se mostra incompatível,
pois quando delegou competência ao regulamento para
"especificar e classificar as contravenções ou
transgressões disciplinares", bem como "estabelecer
as normas relativas à amplitude e aplicação das
penas disciplinares"
incidiu em manifesta contrariedade ao apontado
inciso LXI do artigo 5º da CF,
o qual, como visto, exige que as hipóteses de prisão
por transgressão militar sejam definidas em lei.”
Aliás, este é também o
entendimento do TRF da 4ª Região, 8ª Turma, que no
Recurso Criminal em Sentido Estrito n°
2004.71.02.008512-4/RS, que por UNANIMIDADE,
decidiu, verbis:
“...
3. Ao possibilitar a definição dos casos de prisão e
detenção disciplinares por transgressão militar
através de decreto regulamentar a ser expedido pelo
Chefe do Poder Executivo, o art. 47 da Lei nº
6.880/80 restou revogado pelo novo ordenamento
constitucional, pois que incompatível com o
disposto no art. 5º, LXI. Conseqüentemente,
o fato de o Presidente da República ter
promulgado o Decreto nº 4.346/02 (Regulamento
Disciplinar do Exército) com fundamento em norma
legal não-recepcionada pela Carta Cidadã viciou o
plano da validade de toda e qualquer disposição
regulamentar contida no mesmo pertinente à aplicação
das referidas penalidades, notadamente os incisos IV
e V de seu art. 24. Inocorrência de
repristinação dos preceitos do Decreto nº 90.604/84
(ADCT, art. 25).” (g.n)
Nosso entendimento é corroborado também
pela doutrina, vejamos os ensinamentos dos doutos
juristas, verbis:
José
Afonso da Silva
"é absoluta a reserva constitucional
de lei quando a disciplina da matéria é reservada
pela Constituição à lei, com
exclusão, portanto, de qualquer outra fonte
infralegal, o que ocorre quando ela emprega
fórmulas como: a lei regulará, a lei disporá, a
lei complementar organizará, a lei criará, a lei
definirá, etc."
(in
Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo:
Malheiros, 1997) (g.n)
Eliezer
Pereira Martins
"pode (...) cometer o equívoco de entender-se que
quando o legislador constitucional pede uma lei para
integrar a eficácia da norma contida na
Constituição, está na realidade referindo-se à lei
'lato sensu' (medidas provisórias, decretos,
portarias, etc.). Tal interpretação, contudo, em
sendo feita de modo genérico, como mostraremos, é
rematado erro hermenêutico, já que no universo das
disposições restritivas da liberdade individual, a
lei a que se refere o legislador é sempre o ato que
tenha obedecido o processo legislativo como elemento
de garantia do princípio da legalidade e mais
exatamente da reserva legal. Ora, é cristalino que
decreto não é lei. Na melhor doutrina, aquele é
instrumento de regulamentação nos estritos limites
da lei que o ensejou"
(in Direito Administrativo Disciplinar Militar e sua
Processualidade. São Paulo: Editora de Direito,
1996, p. 86)
O Desembargador Federal PAULO AFONSO BRUM
VAZ, assim asseverou, ao proferir seu voto como
relator do Recurso Criminal n°
2004.71.02.008512-4/RS, verbis:
Ora, é inegável que as sanções em apreço, na forma
em que conceituadas, estão a restringir o direito de
locomoção do militar e, como tal, somente poderiam
ser validamente impingidas acaso definidas em lei
stricto sensu,
consistindo-se a adoção da reserva legal, pois, em
uma garantia para o castrense, na medida que impede
o abuso e o arbítrio da Administração Pública na
imposição da sanção.
O caso, contudo, não é de declaração de
inconstitucionalidade (sujeita ao princípio da
reserva de plenário
prevista no artigo 97 da CF), tampouco de
ilegalidade, das disposições do Decreto nº 4.346/02,
senão vejamos.
A respeito, conforme já assentou o Pretório Excelso,
"se o ato regulamentar vai além do conteúdo da lei,
pratica ilegalidade. Neste caso, não há falar em
inconstitucionalidade. Somente na hipótese de não
existir lei que preceda o ato regulamentar, é que
poderia este ser acoimado de inconstitucional, assim
sujeito ao controle de constitucionalidade"
(STF, pleno, ADI nº 589/DF, Rel. Ministro Carlos
Velloso, DJU 18.10.1991). Note-se que, na hipótese,
o artigo 47 da Lei nº 6.880/80 conferia
expressamente ao Chefe do Poder Executivo a
competência para regulamentar a matéria da forma em
que procedida, não se configurando, em decorrência,
a pecha de ilegalidade do ato.
Poder-se-ia, então, cogitar,
in casu,
de inconstitucionalidade do referido preceptivo da
Lei nº 6.880/80. Porém, como é cediço, o vício de
inconstitucionalidade pressupõe a edição, posterior
ao advento de uma nova ordem constitucional, de uma
norma legal que a contrarie. Em sendo o ordenamento
jurídico infraconstitucional preexistente à novel
Constituição, a validade dos preceitos daquele deve
ser aferida sob o prisma de sua recepção (se
compatível) ou não (se colidente) pelo novo
mandamento constitucional instituído. Realmente,
"a lei ou é constitucional ou não é lei. Lei
inconstitucional é uma contradição em si. A lei é
constitucional
quando fiel à Constituição; inconstitucional, na
medida em que a desrespeita, dispondo sobre o que
lhe era vedado.
O vício da inconstitucionalidade é congênito à lei e
há de ser apurado em face à Constituição vigente ao
tempo de sua elaboração. Lei anterior não pode ser
inconstitucional em relação à Constituição
superveniente; nem o legislador poderia infringir
Constituição futura. A Constituição sobrevinda não
torna inconstitucionais leis anteriores com ela
conflitantes: revoga-as.
Pelo fato de ser superior, a Constituição não deixa
de produzir efeitos revogatórios. Seria ilógico que
a lei fundamental, por ser suprema, não revogasse,
ao ser promulgada, leis ordinárias. A lei maior
valeria menos que a lei ordinária"
(STF, pleno, ADI nº 02/DF, Rel. Ministro Paulo
Brossard, DJU 21.11.1997). O mesmo entendimento,
inclusive, já manifestou a Corte Especial deste
Regional, na sessão que se realizou em 25.05.2006,
ao apreciar a Argüição de Inconstitucionalidade na
AMS nº 2001.70.03.000730-1/PR (Rel.ª Des.ª Sílvia
Goraieb).
De tal forma, em verdade, operou-se, na hipótese, a
revogação, quando da entrada em vigor da
Constituição Cidadã, do artigo 47 da Lei nº
6.880/80, porquanto, ao possibilitar a definição dos
casos de prisão (e detenção) disciplinar por
transgressão militar através de decreto
regulamentar, não restou ele recepcionado pelo novo
ordenamento constitucional, pois que incompatível
com o disposto em seu artigo 5º, LXI.
Conseqüentemente, o fato de o Presidente da
República ter promulgado o mencionado édito com
fundamento em norma legal não-recepcionada pela
Magna Carta viciou o plano da validade de toda e
qualquer disposição regulamentar contida no mesmo
pertinente à aplicação das penalidades de detenção e
prisão disciplinares (a saber: incisos IV e V do
artigo 24).
Por derradeiro, tampouco há falar, na matéria, em
repristinação dos preceitos do Decreto nº 90.604/84,
uma vez que, a teor do artigo 25 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias, foram
expressamente
"revogados, a partir de cento e oitenta dias da
promulgação da Constituição, sujeito este prazo a
prorrogação por lei, todos os dispositivos legais
que atribuam ou deleguem a Órgão do Poder Executivo
competência assinalada pela Constituição ao
Congresso Nacional, especialmente no que tange a: I
– ação normativa".
Assim sendo, voto por: a) não-conhecer do recurso em
sentido estrito manejado pela União; e b) dar
parcial provimento à remessa
ex officio
para, afastando a inconstitucionalidade Decreto nº
4.346/02, reconhecer a não-recepção, pela Carta
Magna de 1988, do artigo 47 da Lei nº 6.880/80 e,
por conseguinte, a invalidade dos incisos IV e V do
artigo 24 do referido decreto presidencial.
Destarte, as
aplicações das punições disciplinares, mormente as
de prisão, detenção e impedimento disciplinares são passivas de
anulação mediante impetração Habeas Corpus cuja
competência para julgamento é da Justiça Federal.
Para as punições
disciplinares que estão em vias de serem aplicadas,
há a possibilidade de impetração do writ para
obtenção de salvo-conduto evitando-se, assim, que a
autoridade coatora aplique as sanções em decorrência
de supostas transgressões disciplinares, que
comporta prestação antecipatória de tutela
jurisdicional liminar, ou seja, deve-se quando da
impetração do writ requerer o pedido liminar
de antecipação de tutela jurisdicional até
julgamento final, visto demonstrados o periculum
in mora e fumus boni iuris.
Veja as
jurisprudências:
RECURSO CRIMINAL EM SENTIDO
ESTRITO Nº 2004.71.02.008512-4/RS
HABEAS CORPUS Nº
2004.04.01.034051-2/RS
RECURSO CRIMINAL EM SENTIDO
ESTRITO Nº 2001.71.02.000271-0/RS
RECURSO DE HABEAS CORPUS Nº
2003.71.02.009643-9/RS
RECURSO CRIMINAL EM SENTIDO
ESTRITO Nº 2004.71.02.008344-9/RS
AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº
2006.04.00.032201-7/PR
AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº
2006.04.00.037297-5/SC
APELAÇÃO CÍVEL Nº
2005.70.00.012975-6/PR
APELAÇÃO CÍVEL Nº
2004.70.00.001263-0/PR
HABEAS CORPUS
Nº 2007.71.00.029195-9 (RS)
Para maiores
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